Cantor e compositor Milton Nascimento completa 70 anos hoje. Em sua homenagem e para seus fãs estou colocando sua biografia, escrita por Maria Dolores, autora do livro "Travessia - a vida de Milton Nascimento".
NAS ESQUINAS DO MUNDO
Biografia de Milton Nascimento escrita por Maria Dolores
Dia vinte e seis de outubro de 1942, seis horas da tarde, a
hora do ângelus. Na rádio toca a Ave Maria e nos corredores da Casa de Saúde de
Laranjeiras um choro divide o silêncio com a melodia. É um bebê que acaba de
nascer, seu nome: Milton do Nascimento...
Milton Nascimento passou os dois primeiros anos da sua vida
num sobrado na rua Conde de Bonfim, na Tijuca, Rio de Janeiro, onde sua mãe,
Maria do Carmo do Nascimento, trabalhava como doméstica.
Desde o primeiro dia em que chegou ali, recém-nascido, tornou-se
membro da família Pitta Silva, apadrinhado pelos donos da casa, Edgard e
Augusta, e criado sob os cuidados e o carinho das filhas do casal, Lília e
Dulce, principalmente Lília. Era ela quem passava a maior parte do tempo na
companhia do menino e que lhe deu o apelido de Bituca, em uma referência aos
bicos que fazia ao ser contrariado.
Foi nesses primeiros anos, cercado pelo amor da mãe e das
pessoas da família, que Milton começou a mostrar seu entrosamento com a música,
ao descobrir o piano antes mesmo de completar um ano. Bastava Lília iniciar
seus estudos no instrumento e o pequeno engatinhava até ela, ficava de pé,
apoiando-se no banquinho, e balançava o corpo no ritmo da melodia. Ela então o
colocava sobre o colo para que ele pudesse se divertir, brincando com as teclas
brancas e pretas do instrumento.
Em 1945, com pouco mais de dois anos de idade, a vida de
Milton vira de ponta cabeça. Sua mãe morre em decorrência de uma tuberculose e
ele vai morar com a avó materna na cidade mineira de Juiz de Fora. É a primeira
vez que se vê longe do sobrado da Conde de Bonfim e, apesar do carinho da avó
biológica, não consegue se adaptar ao novo lar. A sensação é de tristeza, e
banzo.
Com saudades da antiga família, passa parte do dia sentado
na calçada, na esperança de que alguém vá buscá-lo. Lília, que havia se casado
e mudado para Três Pontas, ao sul de Minas Gerais, sente que algo não vai bem
com Milton.
Conversa com o marido Josino e os pais Augusta e Edgard. O
jovem casal vai então a Juiz de Fora pedir à avó do garoto que o deixe morar
com eles. Assim a nova família segue o caminho de volta para a pequena cidade
de Minas Gerais.
Apesar de enfrentar o preconceito por ser um negro criado
por uma família de brancos, Milton tem uma infância feliz no interior mineiro,
rodeado por amigos, e pela música. Se antes sua vocação musical se revelava
apenas nas brincadeiras com o piano, em Três Pontas passa a ocupar a maior
parte do seu tempo.
Aos cinco anos ganha uma gaita dos pais e, pouco depois, uma
sanfona de quatro baixos.
Sua diversão preferida é sentar-se na escada da varanda da
casa e tocar a sanfona e a gaita ao mesmo tempo, com ajuda dos joelhos para
segurar a gaita. Como os instrumentos possuem poucos recursos, completa as
notas ausentes com a voz.
Da varanda passa para os palcos das quermesses, acompanhando
a mãe Lília. E é ainda na varanda onde ensaia os primeiros passos como
compositor, criando histórias musicais que divertem os amigos e vizinhos.
Um deles, Wagner Tiso, esconde-se na serraria em frente à
casa de Milton para ouvi-lo tocar. Mas é só na adolescência que os dois se
tornam amigos e montam o grupo vocal "Luar de Prata", justamente
quando Milton ganha seu primeiro violão. Na verdade, o instrumento havia sido
um presente de sua avó e madrinha Augusta para a filha Lília. Entretanto, é ele
quem recebe a encomenda e a leva direto para o quarto. Empolgado ao vê-lo tocar
e dono de uma oficina elétrica, Josino eletrifica o violão do filho.
O "Luar de Prata" apresenta-se em bailes da cidade
e região, e faz uma participação na Rádio Clube Três Pontas, cantando sucessos
dos The Platters, boleros, música americana e tchá tchá tchá. O grupo evolui
para "Milton Nascimento e Seu Conjunto" e no início da década de
sessenta Milton e Wagner montam com outros amigos o "W"s Boys",
em Alfenas. Em razão da banda Milton muda seu nome artístico para Wilton. Fazem
tanto sucesso que os dois são convidados a integrar o "Conjunto
Holliday", liderado por Rogério Lacerda, em Belo Horizonte.
Em 1963, ao terminar o curso de comércio, iniciado após o
ginasial, o carioca então definitivamente mineiro muda-se para Belo Horizonte e
instala-se em uma pensão do Edifício Levy, onde conhece a família Borges.
Além do "Holliday", integra o conjunto de bailes
"Célio Balona". O que ganha como músico, entretanto, não é suficiente
para se manter, por isso trabalha durante o dia como datilógrafo em um
escritório das Centrais Elétricas de Furnas.
Em 1964 monta com Wagner Tiso e Paulinho Braga o
"Berimbau Trio", no qual estréia como contrabaixista. No intervalo de
uma das apresentações do grupo faz amizade com Márcio Borges, que o incentiva a
compor. Milton resiste e só depois de assistir a três sessões seguidas do filme
"Jules et Jim", de François Truffaut, compõe suas três primeiras
músicas, parcerias com Márcio: "Crença", "Novena" e
"Gira Girou".
Ainda nesse período grava o compacto "Barulho de
Trem", com o Holliday, e o elepê "Quarteto Sambacana", com
Pacífico Mascarenhas.
Em 1966 participa do Festival Berimbau de Ouro, em São
Paulo, defendendo "Cidade Vazia", de Baden Powell e Lula Freire. Fica
em quarto lugar e decide se transferir para a cidade. No mesmo ano, Elis Regina grava "Canção do Sal".
Apesar de começar a ser reconhecido pelo meio musical,
Milton passa muitas dificuldades em São Paulo. Para tentar animá-lo, os irmãos
Adilson e Amílton Godoy, de quem havia se tornado amigo, levam-no a um centro
espírita no dia da festa de São Cosme e Damião.
Lá, Milton é avisado por uma entidade que sua vida passará
por uma reviravolta em pouco tempo.
No entanto, ele não está disposto a buscar nos festivais o
trampolim para a reviravolta anunciada. Decepcionado com o clima competitivo
dos eventos, decide nunca mais participar de um, mas em 1967 conhece Agostinho
dos Santos durante uma de suas apresentações em um bar da capital paulista.
Agostinho, a pretexto de gravar em seu próprio disco, pede ao novo amigo uma
fita com três músicas e as inscreve no Festival Internacional da Canção. As
três são classificadas, Milton é eleito melhor intérprete e uma delas,
"Travessia", fica em segundo lugar, tornando-se uma das músicas mais
conhecidas e gravadas de Milton, no Brasil e no exterior.
A partir de então, a carreira de Milton Nascimento
deslancha. O mineiro que havia subido ao palco do FIC como um estreante com o
mérito de ter classificado três músicas sai como um nome de peso da música
brasileira, com contratos para gravar no Brasil e nos Estados Unidos.
Os primeiros discos reafirmam-no como compositor inovador e
intérprete excepcional. Com o terceiro elepê, "Milton", em 1970, suas
músicas têm uma guinada pop/rock com a entrada do grupo "Som
Imaginário", que o acompanha com guitarras elétricas e teclados.
Dois anos depois o trabalho, sempre em conjunto com os
parceiros e amigos, com Lô Borges principalmente, culmina no álbum duplo
"Clube da Esquina", que acaba por batizar um dos maiores e mais
importantes movimentos da Música Popular Brasileira.
Nos anos seguintes o "clube" se expande e surgem
novos membros, de velhos amigos a estrelas internacionais, como Wayne Shorter,
Herbie Hancock, James Taylor, Jon Anderson, Naná Vasconcelos, Ron Carter, Peter
Gabriel, Pat Metheny, Gil Goldstein, Jack Dejohnette, Mercedes Soza, Fito Paez,
Hubert Law, Sting, Paul Simon e Duran,Duran.
Maurice White, do grupo "Earth, Wind and Fire"
declarou que tanto as músicas quanto o conjunto foram inspirados nos falsetes
de Milton Nascimento.
Em quase quatro décadas de carreira desde o FIC e
"Travessia" Milton Nascimento se consolida como um dos mais
expressivos e importantes compositores e intérpretes, no Brasil e em todo o
mundo. Em 1990 torna-se o primeiro brasileiro a chegar ao topo da lista de
World Music da Revista "Billboard", com o álbum "Txai", e
nos dois anos seguintes é escolhido o "World Beat Artist of the Year"
pela revista "DownBeat", sendo eleito no primeiro ano pelo público, e
no ano seguinte, pelos críticos.
Com um Grammy em 1998, por seu disco "Nascimento",
Grammys Latinos e inúmeros outros prêmios importantes no Brasil e no exterior,
mas, sobretudo por fazer parte da vida e dos sonhos de pessoas de todos os
cantos, indo aonde o povo está, sua música se firma nas esquinas do mundo e se
propaga, construindo uma das histórias mais sólidas e férteis da música
contemporânea, com muitas páginas por serem escritas.
Maria Dolores
autora do livro "Travessia - a vida de Milton
Nascimento"
FONTE: http://www.miltonnascimento.com.br
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